Problema é o que não falta nos postos de saúde e hospitais públicos de Fortaleza. Médicos não têm papel para passar a receita, é difícil até encontrar água e são raras as vezes em que os pacientes são atendidos pelos médicos Fotos: Marília Camelo
Apesar disso, Marly não se sente inserida dentro desta classe, pois, para ela, a classe média não enfrenta filas para atendimento em hospitais ou postos, pois possui plano de saúde. "Para uma simples consulta no clínico geral eu tenho que ir de madrugada para fila do posto e pegar uma senha, para, quem sabe, se houver médico, ser atendida à tarde", conta.
Para esta nova classe econômica, há um abismo enorme entre o SUS existente e o que é almejado. Dentre as piores avaliações dos hospitais públicos brasileiros e seus profissionais, as notas mais baixas estão justamente para o tempo médio para realização de exames e espera para atendimento ou internação, além da baixa frequência e quantidade de médicos no SUS. De zero a dez, estes dois pontos receberam notas que variaram entre zero e quatro. Pelo menos isso é o que consta no Projeto Vozes da Classe Média 2012, da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR).
A fila para ser atendido por um dentista chega a assustar os pacientes. Mas, sem outra alternativa, eles são obrigados a acordar muito cedo e esperar por horas para que possam finalmente conseguir atendimento
Em Fortaleza, a motivação destas notas pode ser vista em uma simples visita aos postos e hospitais. Na Unidade Básica de Saúde do Bairro João XXIII, pertencente à Secretaria Executiva Regional (SER) III, falta do papel para prescrição de remédios a funcionários.
A trabalhadora autônoma Camila Maia Nascimento, de 20 anos, tem um filho de 3 meses, que até agora não fez nenhuma consulta com o pediatra simplesmente porque este profissional nunca está no seu local de trabalho. "Quem sempre atende a gente são as enfermeiras", conta.
A insatisfação em relação ao serviço de saúde é geral, não apenas dos usuários. Os funcionários do posto trabalham em situação precária, com acúmulo de funções e sob ameaça de demissão. Enquanto estávamos dentro do posto, os usuários denunciavam abertamente diversas irregularidades vivenciadas no local, enquanto os funcionários circulavam calados, apenas observando, como se, sabendo de tudo aquilo, não pudessem se manifestar e o silêncio fosse a única maneira de desabafar.
Existe fila de espera antes mesmo de os pacientes saberem se serão atendidos. Pois, para que isso aconteça, é necessário tirar uma senha e aguardar a sua vez
Engana-se quem pensa que o estrangulamento do sistema é apenas no SUS. Nas emergências dos hospitais da saúde suplementar, os problemas relacionados à demora no atendimento são parecidos. Aparecida Alves, de 40 anos, já chegou a esperar quatro horas para ser atendida.
"Só tenho plano porque o trabalho do meu marido oferece, caso contrário não teria condições de pagar. Mas eu pensava que era melhor, que a gente chegava e era logo atendida. Mas a realidade não é bem assim. Até para consulta em determinadas especialidades médicas, as vezes a gente tem que esperar três meses", conta.
De acordo com dados da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), no Ceará existem 1.850.252 milhão de beneficiários de planos de saúde, destes, 1.441.303 vivem na Capital. "A maior partes destes planos é coletiva, ou seja, de empresas ou entidades de classe", informou o diretor executivo da FenaSaúde, José Cechin.
O sócio-presidente do Instituto Data Popular, Renato Meireles, informou que, "quanto menor a renda, mais recente foi a contratação de planos de saúde. Porém, mesmo com plano, estes beneficiários continuam usando o SUS, pelo menos uma vez ao ano, seja para vacinação ou outras necessidades, como o recebimento de medicamentos".
Dentro deste contexto é impossível não fazer a seguinte indagação: Para onde vai a nova classe média brasileira? Quais seus anseios em saúde? Para onde ela vai não se sabe. Porém, a certeza é que esta camada populacional quer melhores serviços em saúde, mas não está disposta a pagar mais impostos por isso.
Entre 2003 e 2011, 40 milhões de pessoas se juntaram à classe C no Brasil, que passou para 105 milhões de pessoas. Mas o que o poder público tem pensado em termos de soluções em saúde para o atendimento, não só desta população, para que este abismo entre o real e o ideal diminua?
Sobre esta questão a secretária de saúde do município, Socorro Martins, informou que a quebra de paradigmas é o grande desafio, e o maior deles é ter uma atenção primária resolutiva e de qualidade. "Nós temos no nosso território 80% das pessoas atendidas pelo SUS, o grande desafio hoje é retermos nesta atenção primária a formação das redes".
De acordo com ela, a rede de atenção ao doente crônico, onde a maior parte é hipertensa e acima de 60 anos é a que precisa de uma atenção diferenciada. "Com a reforma das unidades básicas de saúde e a ampliação das equipes de saúde da família, reteremos dentro da atenção primária de qualidade este paciente e assim controlaremos e poderemos fazer o controle da medicação e induzi-los a mudanças de hábitos", explica.
Segundo suas informações, estão nos planos da SMS a reforma de 50 postos de saúde e a construção de mais 25. Sobre os cinco meses da atual gestão e o porque de até agora não terem dado esta resposta básica aos usuários, Socorro Martins citou a dívida, no valor de R$ 178 mi, e os empenhos como os principais entraves.
"Tivemos algumas dificuldades nestes primeiros meses com os processos licitatórios, pois nos foi deixada uma dívida de R$ 178 mi com nossos fornecedores e prestadores, e que se agrava quando essa dívida chega onde se teve empenhos. É como se começasse tudo do zero", explica.
A titular da SMS informa que essa situação é um complicador "porque recebemos janeiro sem nenhum recurso, pois este foi todo antecipado para dezembro e todos estes prestadores, que já vinham com dívidas acumuladas, tiveram estas agravadas por causa do atraso", justifica.
THAYS LAVOR
REPÓRTER
PROTAGONISTA
Descaso e lentidão nos postos
Na fila há dois anos por uma prótese dentária, a diarista Luzia Rodrigues, 45, já não aguenta mais esperar. A ausência dos dentes a prejudica na busca de empregos e no convívio em sociedade, pois sente vergonha da aparência, pois, quando fala, o cospe devido ao problema.
A dificuldade em marcar consultas no posto de saúde tem se tornado uma rotina na vida da aposentada Maria Leondia, 55, que não aguenta mais o ir e vir. De acordo com ela, sempre falta alguma coisa, seja papel para consultas, água para beber, ar-condicionado nos consultórios ou limpeza.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Todos querem um bom atendimento
Pode ser tentador pretender dizer qual a preferência deste ou daquele segmento a respeito do atendimento público e do privado, como também seria fácil conseguir fragmentos de evidência que possam respaldar uma preferência pelo mercado. Mas, nenhum analista sério deveria alardear um fazer uso desse eventual consenso a respeito da preferência pelos serviços privados. Nessa matéria, não cabem pesquisas de opinião. Afinal, não estamos num programa de auditório ("Vocês preferem SUS? Vocês preferem plano? Vocês querem bacalhau?"). Formular políticas tão importantes quanto são as políticas de saúde e de educação com base em suposições a respeito do individualismo metodológico é levar a falácia economicista ao absurdo.
Todos da Nova Classe Média (NCM) ou classe operária de macacão, querem, óbvio, acesso a bom atendimento em saúde, a uma educação de qualidade, tanto como segurança e transporte. Todas essas são atividades essencialmente públicas e não há qualquer evidência, em nenhum lugar do mundo, de que sejam mais bem atendidas pela empresa privada do que pelo Estado. Se hoje tanto a "nova classe média" quanto a classe operária de macacão almejam um plano de saúde, uma matrícula em faculdade particular, isso não revela posição ideologizada ou de princípio, mas tão somente um estado de coisas meramente circunstancial.
Que caminhos o Brasil irá adotar, vai depender de um pega pra capar cuja importância não queremos desconhecer e nem temos a pretensão de elucidar aqui. Mas o que nos parece claro é que a NCM, ou a classe trabalhadora emergente, não irá impor qualquer definição. A decisão sobre a estratégia, se estatal ou privatista, cabe aos governos e, principalmente, aos partidos políticos. Se vamos ou não conseguir nos livrar de tantos mitos envolvidos nas pressões sobre os custos em saúde (inovações tecnológicas) bem como do credencialismo vazio da educação, são interrogações que transcendem o pobre debate privado x estatal.
LÍGIA BAHIAProfa. INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA (UFRJ)